quinta-feira, abril 07, 2005

Kuito

Este é bem longo.

Foi uma aventura. Tantas coisas para contar... 4ª feira da semana passada dia 30 de Março fui em trabalho durante 4 dias para o Kuito, capital de província do Bié, no Sul de Angola. O objectivo da viagem foi recolher dados para o Plano Director de Abastecimento de Águas e Saneamento dessa cidade. Antes de mais devem saber que o Kuito foi possívelmente a cidade que mais sofreu durante a guerra em Angola. Durante 22 meses a cidade esteve literalmente dividia ao meio, de um lado da avenida principal estavam as tropas do MPLA, do outro a UNITA. Resultado: grande parte dos edifícios partecem queijo suiço, com uma média de 10 buracos de bala em cada metro quadrado de fachada (irei colocar fotos). Foram 22 meses de combates intensos, com milhares de baixas em ambas as frentes mas principalmente foi a população quem mais sofreu.

No Aeroporto de Voos Nacionais, 4ª às 5h30 (sim, da manhã!) juntei-me à restante equipa: dois engenheiros da Direcção Nacional de Águas e um engenheiro representante da empresa Consulprojecto, fiel parceira da COBA em vários projectos. A representar a COBA, a empresa líder do consórcio de uma obra de vários milhões de dólares, um puto, sem experiência em redes de abastecimento de água, acabado de chegar a Angola... EU! Felizmente, preparei-me bem, lí bastante e desencantei os conhecimentos adequiridos na faculdade.

A vigem fez-se de avião, bimotor, daqueles que levam só 10 passageiros e que abanam que se farta. Tivemos de fazer uma paragem no Lobito para abastecer, o que fez com que no total a viagem durasse 3h30. Não parece muito, mas se vos disser que dentro do avião faz um barulho infernal, que não dá para ler ou dormir porque abana demasiado, que a cadeira é só ligeiramente melhor que um banco da CARRIS...

Do ar tive finalmente noção do gigante que é Luanda. Compõe-se por um "pequeno" aglomerado de prédios (500.000 hab) a "cidade do asfalto", rodeado de uma imensidão (4.000.000 hab) de casas cinzentas em blocos de cimento, e ruas de terra, os "muceques". Passámos por Benguela, Lobito, entrámos pelo planalto central até ao Kuito. Tudo verde, verde, verde.

Chegados ao Kuito, a primeira preocupação foi conseguir alojamento. Felizmente a Directora da Direcção Provincial de Energia e Águas já tinha esse assunto resolvido. Estava avisado: em Kuito não há água canalizada ou esgotos e energia electrica só algumas horas por dia, por isso coloquei as expectativas bem baixas em relação ao alojamento. Ainda bem. Era mesmo mau! O quarto ainda safava, apesar de cheio de pó e com imensas aberturas por entravam mosquitos e outra bicharada. Acendí logo um "dragão" repelente de insectos forte que normalmente se usa ao ar livre, mas como aquele quarto parecia uma selva, acendí lá dentro. A casa de banho... um campeonato completamente diferente. Equipamento disponível: sanita (sem tampa), um alguidar, dois baldes com água e um ralo no chão (para tomar banho). Preço por noite? 70 USD! Sim, 55 Euros! 11 contos! Só fiquei lá uma noite, nas restantes fiquei numa pensão em que por 60USD tinha uma casa de banho totalmente equipada, sem água canalizada, mas com poliban, lavatório, etc e em vez de meio milhar de insectos só um ratinho fofinho daqueles bem pequeninos! Uééééé!

No hora do banho só podia contar com dois baldes de água, um canequinho de plástico, sabonete e muita flexibilidade!

Em termos de trabalho, correu muito bem. Conseguimos reunir todos os dados necessários e ainda deu tempo para adiantar algum trabalho para um projecto que a COBA vai começar a fazer dentro de alguns meses. Nem imaginam o meu pânico quando na véspera da partida o meu chefe me informou que eu é que seria o responsável pela colheita dos dados... Nessa noite não dormí quase nada, porque tinha de acordar super cedo e lí quase toda a informação que havia na nossa sucursal sobre a cidade e este tipo de projectos. "No campo" nunca me armei em espero porque as outras pessoas eram todas bem mais experinetes, mas quando estava seguro de algo dizia-o e assim "o puto" ganhou algum respeito. No final até já me pediam pareceres... Afinal saímos da universidade a saber umas coisitas, e ir às aulas teóricas sempre vale a pena!

Depois do trabalho, ficávamos sempre na conversa. Aprendí imenso, já que 2 elementos da equipa são angolanos e outro é um peruano que está há mais de 20 anos em Angola. Se qualquer angolano tem histórias para contar do período colonial, dos tempos do partido úncio, da guerra, das eleições de 1992; no Kuito essas histórias ainda estão marcadas nos edifícios e nos corpos do povo. Foi também com uma admiração que assistí à minha frente por várias vezes a uma prova viva de reconciliação pós-guerra já que participei em conversas entre pessoas que em tempo estiveram em lados opostos na luta armada e que hoje em dia trabalham juntos para o melhoramento de vida em Angola. Força!

Colegas do técnico, lembram-se da história de "deixar ir uns quantos à frente por causa das minas?". Foi o pão nosso de cada dia no Kuito. Fui visitar locais para uma futura nova captação de água. A pergunta que eu fazia era sempre a mesma: "Há batata?" (N.T. batata=mina anti-pessoal). A resposta também era sempre a mesma: "Não saia do carreiro e ponha os pés onde nós pomos". Como podem imaginar, sempre que chegavamos a um local, deixava-me ficar para trás para - "tirar uma fotos... vão andando, vão andando" - dizia eu.

O regresso a Luanda, foi como chegar a Nova Iorque! No Kuito não há restaurantes, não há telefones de rede fixa, desde Novembro 2004 que não há água canalizada, electricidade só das 15 às 24h, não há praticamente nada nas prateleiras das lojas, mas há um clima fresco muito agradável e pessoas fantásticas! Ao contrário de em Luanda andei imenso a pé e descobrí bairros inteiros do período colonial com moradias de uma arquitectura fenomenal! Várias pessoas me disseram que em tempos o Kuito era lindíssimo, e acredito. Com alguma força de vontade, voltará a ser.

Só uma mensagem: poupem água e dêem valor a aquilo que vos parece ser "garantido", pois para muitos não o é. Definitivamente somos uns idiotas, só damos real valor às coisas quando não as temos à mão.

Pedro

PS - Para a semana vou tentar colcoar no site de fotografias, algumas imagens do Kuito