terça-feira, agosto 02, 2005

Devagar se chega a........ N'Dalatando

(este é gigante!)


6h30 para fazer 240km. Grande parte do percurso feito em "picada", nome localmente dado a qualquer estrada que não seja asfaltada e por consequência rebenta com os amortecedores dos jipes e com as cruzes do condutor. Esta é a principal lembrança que levo da viagem feita a N'Dalatando, a "Cidade Jardim", capital da província do Kwanza Norte, no tempo colonial chamada Salazar (!). O objectivo foi recolher dados para o projecto de execução de abastecimento de água à cidade. A máquina que nos levou até lá foi a pick-up Ssang Yong Musso da COBA, que nem sabemos como conseguiu ir e voltar. A verdade é que chegou a Luanda castanha em vez de branca, cheia de riscos, com 200kg de solos na bagageira e com um monte chiadeiras e tremelicos novos! Tive como companheiros de viagem André Nicolau da COBA e Pedro Zeferino, um simpático experimentador do LEA (Laboratório de Engenharia de Angola) que seria o responsável pela recolha de amostras de solos.


O alojamento, para não variar com o das outras províncias, foi caríssimo e sem condições nenhumas: 40USD para um quarto sem WC privativo, cheio de mosquitos, janelas sem trancas e sem água corrente (sim, banho com canequinho de novo!). O pequeno-almoço no primeiro dia não foi servido e no segundo prendaram-nos com pão duro, café solúvel e leite em pó. O melhor pormenor foi ter no quarto uma TV e dois candeeiros de cabeceira mas não ter nenhuma ficha eléctrica onde os pudesse ligar...


Logo à chegada fomos fazer um reconhecimento da cidade e tirar umas primeiras fotografias. Mais uma vez se confirmou que nas províncias o povo não tem nada a ver com o de Luanda. É muito mais simpático e prestável mas por outro lado não está habituado a ver brancos. Chegámos mesmo a encontrar um grupo de 3 miúdos de aproximadamente 5 anos que ficaram a olhar para nós como se fossemos fantasmas. A mãe explicou rapidamente: "É que nunca viram branco! Só na Televisão." Lindo. Ao longo da estadia de 3 dias compreendi o espanto das crianças: para além de mim e do André só vimos mais 3 brancos, isto numa cidade com 90.000 habitantes.


O centro cidade, apesar de humilde, guarda o traço colonial português com casas e edifícios públicos de uma arquitectura fenomenal. Mesmo casas unifamiliares têm pormenores que deixam qualquer um rendido. Um dos antigos pontos notáveis da cidade, as piscinas, estão abandonadas no ponto mais alto da cidade, tendo uma vista deliciosa sobre toda a cidade, montanhas circundantes e ruínas que recordam o tempo em que aquele lugar era o "ponto de charme" da região. Devido à guerra as populações dos meios rurais concentraram-se nas cidades, e N'Dalatando não foi excepção. Mais de 80% da população mora num mar de Muceques com paredes de tijolo de barro e tecto em chapa zincada que também fazem parte da vista.


A necessidade de fazer escavações para recolher amostras de solos e a inexistência de retroescavadora na região obrigou-nos a recrutar mão-de-obra local para trabalhar à moda antiga: catana, pá e picareta. A equipa recolhida foram quatro jovens lavadores de carros. No início, devido à negociação do preço do serviço (abertura de 6 poços com 2m de profundidade), as relações estavam crispadas, mas ao final do dia já éramos "manos, primos, tios, pais" deles. Esta rapaziada, com idades entre os 17 e os 25 anos, para além de trabalhadores empenhados revelaram ter uma lucidez notável sobre a vida e a situação do país. Falámos de tudo, sem medos, apesar de no encontraremos no meio da selva e no início o mais velho lembrar que "o capim também ouve"! Todos tinham o 7º ou 8ºano de escolaridade, alguns já tinham mulher e filhos e estavam desejosos de ter um emprego diferente da lavagem de carros. Como eles disseram: "Um angolano não rouba, desenrasca". Tinham noção que o crime não compensa e que para comer é preciso trabalhar, nem que isso signifique cavar durante um dia inteiro ao Sol. Não pensem que abusámos deles, porque o trabalho foi bem remunerado, aliás, muito bem remunerado. Num dia ganharam o que normalmente ganham numa semana.


Ah! Sim, eu desafiei mais uma vez a morte! Agora rio-me mas na altura fiquei branco (ainda mais). Uma das zonas onde tínhamos de recolher amostras de solos era no meio da cidade, num baldio próximo das antigas piscinas. Andei por lá às voltas a explicar aos escavadores onde deveriam trabalhar. Mais tarde soube que aqueles buracos alongados não eram antigos canais de água mas sim trincheiras, que durante a escavação encontraram um obus não rebentado e que aquela zona toda era... um campo minado e desta vez não ia ninguém à minha frente a "abrir caminho". Nunca imaginei que no meio da cidade houvesse minas, mas em N'Dalatando "elas há"! Já ao longo da viagem caminho me tinha deparado imensas vezes com fitas vermelhas presas no capim. Mais tarde soube que serviam para assinalar... minas! Elas também deixaram marcas nas estradas: enorme crateras, tanques e carros blindados destruídos ao longo da estrada.


Durante a estadia cunhemos o Tchuchu. Um menino de 6 anos que tinha a extraordinária capacidade de aparecer em qualquer ponta da cidade 10 minutos depois de lá teremos chegado. Sempre que aparecia pedia "dinheiro pós cadénus e pa pêch". Para além de o prendaremos com o seu primeiro passeio de carro, no final oferecemos-lhe cadernos e uma caneta. Queríamos comprar-lhe uma cadeira para ele levar para a escola, mas o stock na cidade estava acabado.


A viagem de regresso fez-se pelo mesmo caminho mas foi mais interessante. Parámos em algumas localidades, tendo mesmo comprado fruta numa delas. Quiseram vender-me uma papaia óptima, jindungo e um fruto local por 50Kz (0,50€), mas senti-me na obrigação de dar pelo menos 100Kz. O que é notável é que estávamos no meio da selva, a 100km de uma cidade, e qualquer pessoa com quem falássemos, mesmo que só estivesse vestida com uma tanga e uma catana, falava PORTUGUÊS! E bem! O cúmulo da influência lusa foi o nosso almoço. Parámos no meio da picada, na selva, em Angola, África e o menu foi carcaça com atum Ramirez, salsichas Nobre e água do Caramulo!


Vimos macacos e cruzamo-nos com uma macumba bastante sádica: uma cabeça de macaco virada para a selva, espetada num pau. Não sei para que serve, mas pelo menos nós brancos fugimos a correr. Nisso resulta!


Assim foi mais uma aventura. Já tenho fotos, vão ver!
Abraços e beijinhos.
Pedro